Meu pai diz que o salário mínimo é um dinheiro que não serve pra nada, mas na televisão o moço disse que só pode ser isso mesmo, e está acabado. Meu pai quase quebrou a televisão depois que o moço falou.
Meu pai anda chamando o salário mínimo de um outro nome, mas eu não vou dizer aqui, porque outro dia eu disse esse nome no recreio e a professora me deixou de castigo.
O salário mínimo deve ser muito engraçado porque quando falaram que ele tinha aumentado, lá em casa todo mundo deu risada.
Meu pai disse que uma vez um homem que era presidente falou que se ganhasse salário mínimo dava um tiro na cabeça, mas eu acho que ele estava brincando, porque quem ganha salário mínimo não tem dinheiro pra comprar revólver.
O meu pai não ganha salário mínimo mas com o que ele ganha também não dá pra comprar muitos revólveres a não ser de brinquedo e só de vez em quando.
O meu avô é aposentado. Ele não faz nada mas parece que já fez. Ouvi dizer que o salário mínimo não aumentou mais por causa dele. Eu não sabia que o meu avô era tão importante. Minha avó não é aposentada. Também, ela é muito velhinha, não dá pra ser mais nada.
Lá em casa falaram que com esse salário mínimo não vai dar mais pra comprar a cesta básica. Eu não sei muito bem o que é a cesta básica, mas parece que tem comida dentro. Se for, é só diminuir bastante o tamanho da cesta que aí cabe tudo.
Ouvi meu tio desempregado dizendo que tem um livro chamado Constituição, onde está escrito que com o salário mínimo a pessoa tem que comer, morar numa casa, andar de condução, se vestir e uma porção de coisas. Coitado do meu tio. A falta de emprego está deixando ele doidinho.
Quando eu crescer não vou querer salário mínimo, mesmo que seja o dobro. Parece que ele é tão pequeno que mesmo que seja o dobro do dobro ele continua mínimo.
A minha mesada é muito pequena, mas inda bem que ninguém inventou a mesada mínima, porque com o que minha mãe me dá quase não dá pra comprar figurinha.
Pronto. Isso é o que penso do tal salário mínimo. Espero que a professora dê uma boa nota porque ela é muito boazinha e merece ganhar muito mais do que todos os salários mínimos juntos.
Só mais uma coisa: se eu fosse presidente da República mudava o salário mínimo para um salário bem grande e chamava ele de salário máximo.
Extraído de: Jô Soares - Veja edição 1444, ano 29, n. 20, 15 de março de 96
O protesto no texto
ResponderExcluirNão há como negar que a nossa sociedade apresenta muitas desigualdades. Uma parte dela tem os seus direitos garantidos: tem acesso à saúde, à educação, à habitação e vive em condições dignas. Outra parte, porém, vive na sombra, na miséria e não tem acesso aos direitos fundamentais do homem.
Contra essa situação de exclusão, muitos textos são produzidos. Leia a poesia abaixo e repare nas marcas de protesto que ela traz.
O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão.
Não era uma gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira - Poesia Completa)
O poema de Manuel Bandeira não deixa dúvidas. Ele nos descreve uma pessoa reduzida à condição de bicho. Ele nos apresenta a fome em estado bruto.
O homem - bicho do poema de Bandeira age como um animal, porque está excluído da cidadania, está faminto e sem dinheiro.
Ao incluir no seu poema uma cena tão perversa da exclusão social, o poeta nos alerta para os absurdos da miséria e faz assim uma crítica aberta às injustiças e desigualdades.
Leia o texto abaixo.
A alma da fome
"A fome é exclusão. Da terra, da renda, do desemprego, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania. Quando uma pessoa chega a não ter o que comer, é porque tudo o mais já lhe foi negado. É uma espécie de cerceamento moderno ou de exílio. A morte em vida. E exílio da terra.
A alma da fome é política.
É gente que começa o dia buscando o que comer que chega à noite sem nada. Pode-se imaginar o quadro porque é o de todo dia para milhões de seres humanos: a fome da comida e de tudo. A essa altura da vida da humanidade é incrível que isso aconteça." (Herbert de Souza - Ética e Cidadania)
O texto acima diz, a seu modo, o mesmo que disse o poema de Bandeira. Ele nos revela também um quadro perverso de exclusão "da renda, do emprego, do salário, da educação, da economia, da vida e da cidadania."
Além disso, o texto nos dá também indicações sobre as causas da fome.
Ao afirmar que "a alma da fome é política", o texto sugere que a solução do problema da exclusão social passa pelas decisões políticas.
Adoro essa crônica do Jô Soares.
ResponderExcluirFique em paz,
Amanda.